E é justamente porque nos tornamos fotógrafos de profissão que não encontrávamos mais tempo para fotografar para nós mesmos, sem o cliente, sem o contrato, sem briefing, sem horário, sem nada, só por amor. Que grande ironia: somos fotógrafos porque gostamos de fotografar e deixamos de fotografar porque viramos fotógrafos. Foi nessa junção entre necessidade de férias com necessidade de fotografia autoral que fizemos as malas, era hora de deixar um pouco o estúdio de lado para praticar o amor desambicioso.
E o destino foi decidido de maneira bem simples:
– O que mais gostamos de fotografar?
– Gente!
– E aonde tem bastante gente?
Pegamos então um voo rumo a China no dia 3 de março de 2013.
Na mão um caderninho cheio de endereços em ideogramas, nas costas o equipamento fotográfico finamente escolhido e preparado, na barriga o frio sempre presente. Tem quem saia de férias para se distrair, mas a gente vai mesmo é para se atrair. Passamos cerca de dois meses estudando. Lemos cada relato dos blogs de viagem brasileiros sobre a China, estudamos a cultura, os hábitos, desenhamos o trajeto sobre o mapa duas, quatro, cinco vezes até fecharmos o roteiro, reservamos os hotéis, pesquisamos os trens, os monumentos, as comidas, a historia, decoramos frases em chinês, tiramos vistos, tomamos vacina, compramos casacos novos, tudo para que no final de um voo de cerca de 30 horas a gente percebesse em menos de um minuto que ainda assim não entendíamos nada a nossa volta, absolutamente nada. Tudo era novo, tudo era mistério. Perfeito, concluímos.
A China nos recebeu sem muita atenção. Ela corre desesperada 24 horas por dia, 7 dias por semana sem descanso, sem intervalo, sem tempo para mimar o gringo. Chegamos a Pequim ainda de dia e já nos sentimos engolidos pela cidade com seu transito exuberante de todos os modelos de carros, bicicletas, riquixás, motos entre outros tipos de artefatos para se locomover, os quais eu não saberia nomear, em avenidas gigantescas com guardas no centro tentando reger aquela bagunça linda e complicada.
Tudo era grande, tudo era longe, tudo tinha muita gente e tudo era escrito somente em ideogramas imensos que avisavam coisas importantíssimas às quais não fazíamos a menor ideia o que eram. E a gente ali no meio de Pequim, descobrindo que não é nada naquele mundaréu de chinês, feliz da vida. Ficamos hospedados dentro de um tradicional hutong, desses que povoam nosso imaginário sobre a China, com as casinhas cinza, ornadas com ideogramas vermelhos, chão de terra batida e ruas que formavam um verdadeiro labirinto e aos poucos desembocavam em avenidas modernas e iluminadas de prédios imensos que alienavam o espaço antes tradicional, mas agora internacional. Apesar das visitas aos monumentos clássicos como a grande muralha, a cidade proibida, o templo do céu, entre outros pontos de fato imperdíveis a qualquer pessoa que visite Pequim e queira entender a historia do país, logo percebemos que só nos hutongs nos sentíamos realmente satisfeitos como fotógrafos.
Tudo era foto. A senhora cozinhando na rua, as pessoas de pijamas indo a banheiros públicos, as inúmeras bicicletas, os grupos que jogam cartas nas praças, enfim, cenas que configuravam sempre a ideia de uma China clássica, intocada e parada no tempo, rodeada pelo universo da China urbana, superpopulosa, moderna. Os hutongs são verdadeiros parques de diversão para fotógrafos. Mais fotogênicos do que qualquer Buda milenar já fotografado e refotografado diversas vezes por dia, eu acho. E éramos quase sempre muito bem aceitos com a câmera na mão. O chinês geralmente é curioso, bem humorado e não costuma a se importar com a câmera. Se não querem ser fotografados fazem que não, mas não criam caso, sorriem e logo se esquecem da sua presença. Além disso, nos sentíamos extremamente seguros em carregar equipamentos, em nenhum momento nos sentimos vigiados ou sob qualquer ameaça de furto ou assalto. A China é muito segura, ponto importante para qualquer turista.
E os primeiros dias em Pequim se passaram deliciosos e rápidos, entre grandes monumentos e hutongs riquíssimos de vida. Em pouco tempo começamos a pegar o ritmo do país. Acordávamos cedo para pegar o os primeiros raios de sol nas vielas dos hutongs e logo a cidade engolia a gente até tarde da noite numa correria insana de ver tudo o que Pequim tem e mesmo assim saber que nem em uma vida toda conseguiríamos. Deixar Pequim foi quase uma dor, subimos de coração apertado no voo da Air china.
Seguimos então viagem para Xi`an, cidade escolhida por abrigar os guerreiros de terracota e lá ficamos hospedados no Muslim Quartier que começa exatamente embaixo da antiga torre do sino da cidade. A impressão que se tem é que ela funciona como uma espécie de portal que divide as avenidas modernas e com aspecto comum de qualquer grande cidade, do mundo antigo e pitoresco em que vive aqueles quarteirões muçulmanos em suas incontáveis barraquinhas de comida. A cena era impressionante, mulheres com lenços de todas as cores, espetinhos de carne, nozes e sucos de romã oferecidos aos berros em cada canto por preços baixíssimos, cozinheiros fumando na rua no pequeno intervalo entre um wok e outro e pra finalizar passou pela gente um casamento inteiro no meio da rua, como uma passeata, o qual seguimos curiosos e ansiosos para fotografar, e logo fomos convidados a nos unir a festa. E claro, aceitamos o convite.
Apesar dos famosos e lindos guerreiros, Xi`an sempre será lembrada por mim por aqueles quarteirões muçulmanos. Quando penso na viagem toda, a saudade maior bate ainda por eles. Suas especiarias gastronômicas nos impressionaram tanto que nos deixamos passar os dias ali, entre fotografar e comer. E comer na China sempre era uma aventura. A princípio, tivemos uma má impressão, tudo parecia ser uma espécie de miojo. Acontece que o preconceito era nosso, o noodles é um prato extremamente complexo, com a massa fresca feita na hora, o caldo super estruturado, com centenas de combinações de massas, cogumelos, tipos de carnes e legumes. A aparência pode não ser exatamente apetitosa para nossos padrões, mas o sabor quase sempre era divino e encontrávamos em todos os restaurantes. Era como arroz e feijão no Brasil. E aprendemos a nos aventurar com todos os outros pratos que vimos. Assim tivemos bons momentos com espetinhos de polvo, bolinhos fritos de carne de porco com cominho e noodles verdadeiramente reconfortantes e quentes no final de um dia de frio e outros nem tanto como a salsicha branca doce e o bolo de frango com cobertura de açúcar e chocolate.
A pessoa que imagina um escorpião no palito quando pensa na China tem uma visão limitada, deturpada e caricata sobre uma culinária que é simplesmente milenar. De lá pegamos o nosso primeiro trem com destino para Pyngao. Viajar de trem na China tem toda uma importância sociológica, um país daquele tamanho só se conecta de forma barata pelos trilhos e nos vagões você convive irmãmente com os chineses. Troca sorrisos, experimenta comidas, divide mesas de frente a janela e água quente para os noodles, enfim, acaba passando todo tipo de sentimento, do estranhamento cultural a identificação humana, e no final da viagem se despede dos companheiros de vagão como quem se despede de amigos de longa data.
Pyngao é uma cidade parada no tempo. Foi rica no passado, mas teve uma queda brusca em um tempo de crise. Toda a riqueza saiu de fininho dali e deixou intocados os pátios e mansões de família. Esse ar decadente e intacto atrai hoje em dia o turismo cult e é disso que a cidade vive. Em alguns pontos me lembrava um pouco com Paraty. Ali em Pyngao descansamos. Nos demos bons jantares, alugamos bicicletas para andar em volta do muro antigo, tomamos cerveja chinesa e tiramos umas férias do equipamento fotográfico pesado para dar aos nossos ombros um tempo enquanto o Iphone fazia hora extra. Foram férias dentro das férias. E no final fotografar com o Iphone era sempre mais discreto e silencioso do que com a câmera, o que nos rendia cenas onde interferíamos menos.
E para fechar com chave de ouro, fomos a cidade de Datong. Datong nos pareceu comum, crua, suja a primeira vista, sobretudo para quem vem de Pyngao. Grande como qualquer cidade chinesa, mas com uma mentalidade incrivelmente diferente de Pequim. Tínhamos sempre a impressão de que nunca antes um ocidental havia passado por lá porque éramos parados a todo momento na rua por chineses que só queriam de fato nos olhar e durante algum tempo cheguei a me perguntar porque havíamos colocado Datong em nosso roteiro até conhecer as Grutas de Yungang, patrimônio mundial da Unesco, são 51 grutas ao longo de uma encosta que hospeda cerca de 51 mil estátuas budistas esculpidas direto nas pedras, sendo a maior com quase 17 metros de altura. Fiquei encantada. De todos os monumentos que vi na China, e foram muitos, as grutas e seus budas milenares foram as mais chocantes. Nunca vi nada como aquilo. Não esquecerei.
De Datong voltamos a Pequim de trem e assim fechamos nosso roteiro. Foram 30 dias, 2.500 quilômetros, 4 cidades e muitas fotos. Voltamos ao Brasil cansados, felizes e com um material delicioso de se ver, rever, selecionar e editar durante meses. Foi como renovar nossos votos matrimoniais com a fotografia.
Penso hoje, que a viagem em si só foi possível porque a China tem uma infraestrutura invejável a preços extremamente honestos e a comunicação não é tão complicada quanto parece. Basta querer e tentar. O chinês te percebe como humano, é cordial e receptivo.
E assim uma parte do material foi parar na exposição que chamamos de “Feito na China”. De Campinas passou por São Paulo na Galeria F2.8 e em breve segue para Brasília. A ideia é que continue assim, em movimento. Foi publicada também no caderno de turismo do Jornal Folha de São Paulo e agora cá estamos na Fotografia et al. É sempre tão bom dividirmos a nossa historia com colegas de paixão.
Esperamos de fato que sirva de combustível para que todos os adictos da fotografia como nós deem a si mesmo um tempo para registrar esse mundo imenso a nossa volta.
Gui Galembeck & Tatiana Ribeiro
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