Encontrei Araquém para uma conversa num sábado de muito calor em São Paulo. Ele me recebeu às 13hrs no seu escritório e foi logo mostrando seus livros mais recentes, principalmente o livro “Amazônia” feito em parceria com o roteirista Thierry Piantanida. Este livro foi feito a partir de imagens capturadas durante a produção franco-brasileira do filme “Amazônia”, que conta a história de um macaco-prego que sai ileso de um acidente de avião e precisa aprender a viver na floresta. Conversamos um pouco sobre a experiência de participar de uma produção cinematográfica, seu papel como consultor especialista na floresta e também como fotógrafo do set de filmagem.
Foi meu primeiro contato pessoal com Araquém e ele foi logo avisando: “Vou falar muito e quase sempre vou emendar um assunto no outro, se achar necessário, vai ter que pedir para eu terminar o que estava falando antes, se não, sigo em frente”. Foram raras as vezes que pedi para retomar um assunto. Guardei minha folha com a lista de perguntas, cuidadosamente planejadas ao longo da semana, e deixei-o seguir em frente. Não me arrependo, foram três horas de muita conversa e muito aprendizado.
Depois de 30 minutos falando sobre sua participação na produção do filme e o livro resultante, ele dispara:
– Você gosta de japonês?
Eram quase 14hrs, ainda não tínhamos almoçado, deduzi corretamente que ele se referia ao estilo culinário. Após afirmar que sim, pegou o telefone e avisou que estávamos a caminho e pediu para irem separando um prato com nome japonês que, mesmo ouvindo várias vezes a gravação da entrevista, não me atrevo a tentar reproduzir aqui. Pegamos meu carro e seguimos em direção ao bairro da liberdade e no caminho a conversa fluía incessantemente. Foi assim o tempo todo, um assunto atrás do outro, falando sobre sua carreira, seus projetos, um pouco sobre sua vida pessoal e principalmente destilando suas opiniões.
Araquém Alcântara é uma pessoa segura. Seguro da sua importância como fotógrafo e do seu papel na sociedade como cidadão brasileiro. Essa segurança toda vem da sua experiência de 43 anos de profissão, 47 livros, mais de 20 exposições e diversos prêmios conquistados. Mas vem também da sua personalidade forte. Ele se define como um desbravador; das matas brasileiras, aonde a mais de quatro décadas explora e fotografa; e da fotografia brasileira, que cresceu com seu trabalho. Pioneiro em várias inciativas dentro de sua profissão e área de atuação, vem abrindo caminhos para jovens fotógrafos que se inspiram no seu talento.
A fotografia entrou na vida de Araquém de forma abrupta e arrebatadora. O jovem estudante de jornalismo foi hipnotizado assistindo as cenas de um obscuro filme japonês em uma sessão da madrugada. O filme quase não tinha diálogos, era uma sequência de imagens retratando a rotina diária de uma família vivendo no isolamento de um ilha, em um ambiente hostil. A história sendo contada com imagens. Sua mente foi aos poucos sendo esvaziada e preenchida com novas ideias. Naquela noite sua alma foi tomada e sua vida reescrita. Ele seria um fotógrafo.
No dia seguinte, com uma máquina fotográfica emprestada e três rolos de filme, saiu pela noite de Santos à procura de um assunto. Andou sem rumo pelas docas e ruas da cidade e não tirou nem uma foto sequer. Já amanhecendo, quase desistindo, avistou uma prostituta no ponto de ônibus. Se aproximou meio timidamente, indeciso, e se surpreendeu com a reação da moça.
– Quer fotografar? Então fotografa isso!
E enquanto falava, ela levantou a saia, mostrando o sexo. Ainda surpreso fez sua primeira foto. Anos depois, Araquém veio compreender que, mais do que a primeira foto, aquela foi sua primeira lição de fotografia. É preciso estar sempre atento, pois a qualquer momento a vida pode levantar o véu e revelar os seus mistérios.
Em 1973 fez sua primeira exposição: “Os Urubus da Sociedade”. Panos pretos cobriam as fotos de urubus, detritos nas ruas e o povo encardido. O visitante para ver precisava levantar os panos, talvez uma ideia influenciada pela primeira foto.
Um fato interessante na carreira de Araquém; não houve experimentação, ou se houve, ele acertou de primeira. Desde o princípio ele foi coerente em sua linha de trabalho, não se desviou de sua busca incansável pelas imagens que melhor retratam o que o Brasil tem de mais belo e ao mesmo tempo mais vergonhoso. Sua natureza, sua beleza natural, e a forma como nós brasileiros a destruímos consistentemente.
Sua andança pelas matas começou em 1979, em uma matéria sobre a exploração desenfreada da Mata Atlântica. Andando a pé por matas virgens, subindo e descendo morros, dormindo sob a copa de árvores centenárias, foi sua revelação final.
“Uma vez, em plena Juréia, me senti como que ungido para essa missão. Uma noite, fui contemplado com a visão da mãe-de-fogo, também chamada tucano-de-ouro, uma bola de luz com rabo de cometa que se desprende dos ermos e se sustenta por uns segundos no céu.”
Esse projeto rendeu seu primeiro livro solo “Juréia – A Luta pela Vida”, lançado em 1988. Este foi o precursor de muitos outros que juntos, iriam formar mais do que um conjunto de livros, mas o testemunho de uma vida dedicada à natureza brasileira.
Araquém não fotografa apenas bichos, plantas e paisagens; também direciona suas lentes para o povo do lugar, o sertanejo, os índios. Perguntei se ele enxergava as pessoas de forma diferente de como enxergava a natureza. Não, claro que não. As pessoas fazem parte da natureza; são a natureza; sofrem com o desmatamento e a exploração desequilibrada, tanto ou mais do que a própria natureza.
Uma das histórias de Araquém que mais ficaram marcadas na minha memória, eu ouvi, ou melhor, li, a muito tempo atrás. É a história de uma de suas fotos mais conhecidas, a foto feita para protestar contra a construção de usinas nucleares na Juréia. A foto por si só já é impressionante e faz jus a fama, a história apenas soma a importância da mesma. Nas palavras do próprio Araquém, aconteceu assim:
“Voltei[1] mais equipado para uma fotografia de combate e denúncia, a social em preto-e-branco, em cores, a ecológica. Nessa época, princípios da década de 80, o governo militar vinha engendrando duas usinas nucleares justo na região da Juréia. Me aliei aos protestos e produzi uma foto lendária. É onde na história entra meu pai, Manuel Alcântara, o velho Queco.
Pois num dia de abril de 1981 dispôs-se o velho Queco a acompanhar o filho fotógrafo para uma foto contra as usinas nucleares. Saímos de Peruíbe, andamos uns 36 quilômetros a pé, só paramos em plena Juréia, na praia de Grajaúna, onde as tais usinas seriam construídas. Ali o velho Queco, que usava tranças, soltou a cabeleira, segurou contra o peito uma foto, solenemente emoldurada, mostrando cadáveres insepultos das vítimas de Hiroshima. E o filho fez a foto.
A foto correu o Brasil, correu o mundo, como um grito, um exorcismo. O velho Queco, profético, com uma tragédia no peito. Jornalistas deram matéria contra as usinas, os caiçaras passaram a dizer que era coisa do diabo.
Hoje a praia da Grajaúna faz parte da reserva ecológica da Juréia.”
Araquém tem muitas fotos famosas e muitos livros premiados. Mas certamente o mais importante é TerraBrasil. Inspirado por Ansel Adams, grande fotógrafo de paisagens americano que, em 1938 lançou o livro de edição limitada “Sierra Nevada: John Muir Trail”, retratando a ameaça de descaracterização do vale de Yosemite, das florestas de sequoias e do Grande Canyon; e investido de um nacionalismo idealista, resolveu por em prática um sonho. Documentar os 48 parques nacionais brasileiros existentes na época.
TerraBrasil é o resultado desse projeto pessoal, que durou 15 anos para ser concluído e exigiu diversas viagens por todo esse país de proporções continentais, retratando e documentando todos os parques nacionais brasileiros. Araquém conta que nessa época, todas as pautas que sugeria aos seus editores, de alguma forma o levavam por estas viagens. Todo dinheiro que ganhava, financiava as viagens que não conseguia encaixar em seu trabalho. Começou com os parques mais próximos a Santos, onde morava. São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, e assim foi seguindo adiante com seu projeto, um parque nacional de cada vez.
Na década de 90, faltava documentar oito parques na Amazônia e decidiu empreender uma viagem final para documentar todos de uma vez. A expedição planejada para durar dois meses foi concluída em cinco. Sequestrado por índios Caiapós, pane de avião monomotor e pouso forçado no Pará, canoa desgovernada no rio Cotingo em Roraima, ameaça de morte com fuzil apontado na Transamazônica e malária foram algumas das dificuldades que enfrentou ao longo da expedição. Nos momentos mais difíceis Araquém buscava inspiração na jornada de Ansel Adams para reunir forças e seguir adiante em sua própria aventura.
O último parque a ser documentado foi o Pico da Neblina, o ponto mais alto do país, com 2994 metros, no norte do Amazonas. Foram 17 dias na mata, ida e volta. Araquém, em companhia de seu assistente Marcos Blau, dois carregadores yanomamis e dois guias, atingiu o pico em 25 de março de 1995. Emocionado por concluir sua jornada, deixou seu registro em um caderninho velho, guardado pelos aventureiros em um buraco da pedra que sustenta a bandeira do Brasil.
“Aqui, no ponto mais alto da minha terra, consagro minha vida, a criar e repartir belezas.”
O livro TerraBrasil foi lançado em 1998, recentemente esgotou sua 11ª edição e já vendeu mais de 100 mil exemplares. É disparado o livro de fotografias mais vendido do Brasil. Sua última versão possui 248 páginas e 152 fotos, 50% a mais do que a edição original.
Chegando ao restaurante japonês no bairro da Liberdade, em São Paulo, Araquém entra cumprimentando a todos; atendente, sushiman, gerente. Aponta para a parede mostra três fotografias suas da cidade de São Paulo, assinadas e em molduras de qualidade. Pergunta sobre os peixes do dia e quais pratos são indicados, depois pede uma degustação dos saquês.
Entre um saquê e outro, Araquém segue contando suas histórias e comentando suas opiniões. Fala por exemplo de seu desentendimento com a National Geographic, revista com a qual colaborou bastante, produzindo inclusive uma edição especial, “Bichos do Brasil”.
– Eu rompi com a National quando percebi a mediocridade deles em relação ao jornalismo ambiental. Não souberam brigar, denunciar. Sem idealismo. Eles estão lá apenas para cumprir horário, ganhar salário. Eu, se vivesse assim já teria me matado!
E ele exemplifica esse idealismo em outro ponto da conversa. Segundo ele, recentemente escreveu sobre a maior reserva de nióbio do país, que incidentemente é uma das maiores, se não a maior do mundo. Nióbio seria um mineral muito usado para reforço estrutural de ligas usadas na construção aeroespacial. No seu artigo ele sugeria a exploração desta reserva de forma sustentável e usar os fundos obtidos para preservação da floresta e até mesmo em estratégias de mitigação da fome. Uma das respostas que obteve foi a seguinte: “Se isso for explorado, que parque você vai fotografar?”.
– Essa é uma visão reducionista de uma pessoa que eu sei quem é – é uma ecochata. Cara, você explora racionalmente uma coisa, aplica isso honestamente em planos de educação e refloresta. Tira um pedaço e refloresta, porque dá pra manter. Ela não estabeleceu uma dialética.
Proteção ambiental é o denominador comum da obra do Araquém, em defesa das matas, dos recursos naturais, ele não poupa ninguém. Segundo ele, até agora, em todo o seu mandato, a presidente Dilma Roussef assinou apenas duas leis de criação de unidades de conservação. O menor avanço em todos os governos desde que ele começou sua batalha na década de 70.
– O governo deveria fazer isso[2]. Por que não faz? Por que os militares não brigam para explorar aquilo[3]? Por que essa visão de que não, que devemos deixar aí. Deixar pra quem? Dá a impressão que eles vão entregar isso aí de novo, como entregaram o manganês da Serra do Navio, como entregaram o diamante do Piauí. O Brasil é um país que entrega sua nacionalidade.
Mas não é só com ecochatos e governo que Araquém se desentende. Críticos de fotografia também estão na sua mira. Quando uma colunista escreveu dizendo ser uma chatice esses fotógrafos ambientalistas que fazem imagens de jacaré de boca aberta, de borboletinhas e pássaros em revoada, Araquém ficou indignado.
– Ela tá confundindo o imaginário dela, o repertório dela, com o objeto da fotografia, a natureza. Não existe esse negócio. Brother, o fotógrafo pode entrar aqui e fazer o maior ensaio do mundo e ganhar todos os prêmios, com fotos desse restaurante. Depende do talento dele.
– Você jamais pode olvidar do documental. O documental é a fotografia, cara! O experimentalismo vem da necessidade da sociedade por novidades.
São 47 livros lançados, todos sobre o Brasil. Uma obra extensa. Pergunto ao Araquém qual o segredo para escolher seus projetos e não se tornar repetitivo. Ele para, pensa e fala: “É uma eterna batalha, sempre olhando e questionando”. Araquém tem muitos projetos, ele aponta para o celular em cima da mesa gravando a conversa e fala que deveria fazer mais isso, gravar suas histórias. Se fizesse, já teria lançado mais um livro: “Histórias de um Fotógrafo Viajante”.
Araquém já viajou pelo mundo, fotografou outras paisagens, mas nunca dedicou um livro a estas imagens estrangeiras. Quando questionado se a paixão era pela natureza ou pelo Brasil, não titubeou.
– Pelo Brasil, mas o Brasil é natureza!
Araquém conta que em uma conversa com Cristiano Mascaro, este lhe disse que ouviu elogios de Sebastião Salgado a seu respeito. Salgado teria afirmado que Araquém é um fotógrafo que ele invejava. Araquém explica orgulhoso, que a razão do elogio seria o fato de que “Salgado é o mundo, Araquém é Brasil!”. Mais do que ter sua técnica e sensibilidade fotográfica reconhecida por nomes importantes da fotografia, Araquém se orgulha mesmo é de ser reconhecido como um arauto do seu país.
– Eu sou um cantador, um intérprete do meu país!
Insistindo no assunto, ponderei que seu talento já era reconhecido mundialmente, seria muito fácil ter sucesso em um projeto fora do Brasil. Não existiria mesmo a vontade de desbravar outras matas, outros desafios? Foi quando confirmou que o Brasil não é o único país no seu imaginário. Com o mundo todo a sua disposição, escolheria o Japão. As cidades, a prostituição, as florestas fechadas, as ilhas diversas, o Monte Fuji, foram algumas das possibilidades que citou. Talvez essa preferência venha do papel que o filme “A Ilha Nua” de Kaneto Shindo desempenhou no seu chamado para fotografia, ou talvez seja apenas uma desculpa para se fartar de peixe cru e saquê.
De concreto mesmo ele citou apenas um convite para falar sobre a Amazônia na ilustre universidade francesa, a Sorbonne. Me pareceu que pelo menos a língua não será problema, visto a desenvoltura com que lia os textos da edição francesa do livro “Amazônia” que havia em seu escritório. Seria esse o início de um roteiro internacional? Nada decidido, mas existe a possibilidade e o interesse pelo menos.
Já no fim da tarde, restaurante vazio, somente o gerente ao fundo aguardando nossa conversa terminar, Araquém comenta: “Acho que tão querendo fechar”. No caminho para deixar Araquém em casa antes de voltar a Campinas, é minha vez de responder a perguntas.
– Me conta mais da revista, quais as suas ideias? E seus outros projetos?
Vou então detalhando como surgiu a ideia da revista, qual a minha visão para desenvolvê-la, quais pessoas estão colaborando. Falo também sobre meus outros projetos voltados para fotografia. Araquém vai ouvindo tudo com atenção e comentando, dando sugestões, fazendo perguntas.
– Cara você disse que queria conversar, não apenas mandar uma lista de perguntas para eu responder por email. Por isso dei a você a oportunidade conversarmos hoje. Trocar ideias. Eu gosto disso. Você tem projetos interessantes, no que eu puder ajudar, eu vou ajudar. Precisamos disso, ideias novas, diferentes.
Na despedida, agradeci a Araquém pela oportunidade de conversarmos, pelo livro que ele me presenteou – um exemplar da coleção Ipsis de Fotografia Brasileira, onde ele é o autor do primeiro volume – a oferta de ajuda nos meus projetos e, principalmente, a franqueza e desenvoltura com que conduziu nossa conversa.
Na estrada, de volta para Campinas, vim ponderando tudo que conversamos e já planejando o artigo. Uma coisa era certa, precisava passar para o texto toda a autenticidade que o Araquém Alcântara demonstra pessoalmente. Se conseguir isso, certamente terei grandes chances de sucesso, apenas por seguir o seu exemplo.
[1] Araquém havia voltado de uma viagem a Manaus, onde fez a venda da foto de uma onça para uma empresa de pneus e, com o dinheiro recebido comprou seu primeiro equipamento profissional de fotografia.
[2] Criar políticas de exploração sustentada dos recursos naturais para ter os recursos financeiros suficientes para criação e manutenção de políticas de proteção ambientais eficientes.
[3] Reservas minerais, como o nióbio.
Carlos Alexandre Pereira
Carlos Alexandre é fotógrafo e escritor de artigos relacionados a fotografia e viagens. Interessado por expedições fotográficas e explorações urbanas, com uma paixão por fotografia P&B que se reflete no seu portfólio quase monocromático. Fotografia Fine Art em séries limitadas no website www.photostandonline.com. Informações sobre workshops de fotografia e expedições fotográficas nacionais e internacionais em www.calexandrep.com e www.f16expeditions.com.
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